quarta-feira, 29 de maio de 2013

Elevador


                

Afobado, perdido em seus horários e afazeres, submerso pelo trabalho em seu ritmo desumano, entrou sem perceber no elevador, décimo quinto rumo ao subsolo três e de lá para qualquer lugar de onde traria mais dinheiro.

Desviando-se de pensamentos inúteis como com que companhia aérea viajaria naquele ano ou sobre o último lançamento de sua montadora preferida, seguindo sua gravata tomou lugar no elevador vazio, no canto de costas para o espelho.

Assim que as portas fecharam-se, é bem verdade que somente seu corpo estava lá e sua mente já estava no destino, junto do cliente portando o talão de cheques, respirou.

As primeiras duas vezes foram pela boca, quando a cabine despencou levemente respirou pelo nariz e assim como um soco sentiu o perfume, um perfume que conhecia, um cheiro de sonho, de desejo, saudade, um soco no nariz.

Por um instante bem mais longo do que o necessário ele esteve em três lugares ao mesmo tempo, como um choque elétrico, como uma experiência religiosa, uma morte instantânea, estava ali com o corpo em algum lugar entre o décimo quinto e o décimo quarto, a mente nos negócios e a alma no passado.

O olfato é um sentido traiçoeiro, algumas vezes desenvolve vontade própria, vida própria. O nariz faz acordos espúrios com a memória, com os pensamentos e com os sentimentos, é certo que de seus acertos pouco sabemos.

O olfato pode controlar outros sentidos se quiser e desvia, cria, engana, fantasia...  Não se engane, cuidado. Tudo isso ele pensou em menos de meio segundo mas ali tudo o mais se tornaria relativo, despencando entre um andar e outro, vinha com a rédeas nas mãos e fustigando com força o perfume dela.

Ressurgiu ali alguma coisa que o Tempo prometeu que estava morto e pelo que fora registrado oficialmente ocupava um túmulo frio fazia muitos anos. Estava ali na frente dele impondo-se uma lembrança saudosa, musculosa, atrevida.

Imaginou um leve abrir das portas em algum daqueles andares sisudos que traria o sorriso franco desapercebido, despreocupado, descuidado e levemente desgrenhado dela.

Ele descobriria logo que sua viagem nem pelo térreo passaria.

Quis, aliás, entre o décimo segundo e o sexto andar, talvez de um modo como há muito não desejara, que ela estivesse ali próximo, no prédio ao menos. Talvez, quem é que pode saber se a encontraria na recepção, no estacionamento ou na calçada, para olha-la ao menos, pra lembrar mais.

Juntou, organizou, catalogou, limpou e revisou toda sua coleção de memórias, aquelas que julgava perdidas e que agora ocupavam a prateleira central e percebeu que aquele cheiro agora estava morando em seu nariz por tempo indeterminado.

Tentando livrar-se daquilo que tanto tempo demorou a deixar quieto, chegou ao subsolo.

Ainda sentindo-se traído, saiu automaticamente do elevador, estava só no estacionamento, as portas frias fecharam-se lentas às suas costas.

Foi até o carro e num tranco tentou abrir a porta trancada ainda, quando enfim conseguiu entrar sentou-se e fechando os olhos respirou devagar, bem devagar.

O cheiro estava ali era ela de novo, e ele podia perceber só agora, era ela ali ainda.
Deveria ser só um perfume, mas era uma caverna profunda e a esta altura estava ele lá sentado no fundo dela sem saber se queria ou mesmo se podia sair.

O telefone tocou, ele atendeu, falou, ouviu, deu partida no carro e seguiu seu rumo.

Partiu feliz por descobrir que ele tinha sim, ao contrário do que pensava, coisas pra se lembrar.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Encomenda


Vamos precisar de bem mais coragem do que isso!
vamos precisar de maturidade, perspicácia
um tanto de descaramento, dum pensamento rápido
uma porção de inteligência e pitadas de burrice.

Paciência o quanto estiver disponível
boa memória e amnésias específicas.
Precisaremos de bastante fôlego e de pontaria também.
Um bom par de botas e um martelo.

E acho que isso basta. Podemos ir.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

A Falta

Conversas de jardim - Saul Carvalho
Saudades suas
estava mesmo
querendo falar
falar contigo
coisas guardadas
pra hoje e
é esta sem dúvida
a ocasião.

Nossas conversas
fazem falta
e o silêncio
companheiro que
cá entre nós
entre nós
sempre disse
tudo ou quase
que deveria ser
dito ou mudo

Silêncio esse
de nós dois
entre nós que
desatasse estes
nós que mesmo
cegos viam
tudo aquilo
ou nada disso
que vive calado
cá no peito

Senti falta
você faz falta
a falta que faz
em diminuir
ou parar o tempo
este ritmo louco
nesta falta
não paro mais
não diminuo a batida

Vem cá então
sentemos ouçamos
e falemos ou calemos
nesta falta
de nos dois

Sinto sua falta
esta falta
pontuda incômoda
Vem conversar
comigo, vem!